12 de junho de 2014

O canto florestal de Maria Bethânia

"Meus Quintais", novo trabalho da Abelha Rainha, retrata os sons de um Brasil interiorano e íntimo à cantora

11/06/2014 09:05 - Renato Contente, da Folha de Pernambuco
Tomas Rangel/Divulgação
"Pra mim quintal é família, agasalho, sexo", defende a cantora sobre o tom íntimo do CD
 Maria Bethânia é o tipo de artista que nutre uma poética circular, com profundo respeito à própria essência e aos ciclos que a integram. Se sua voz primeiro explodiu num contexto político inflamado, ao dar o grito de alerta para a miséria do Nordeste, no show "Opinião" (1965), a baiana não demorou a se aproximar dos três eixos que definiriam a maior parte da sua arte pelos 50 anos seguintes: o amor romântico, a imersão nas raízes brasileiras e a devoção pela natureza, representando sua religiosidade.
Depois do álbum de estúdio "Oásis de Bethânia" (2012) e do registro ao vivo "Carta de amor" (2013), ambos sugerindo uma Bethânia na defensiva diante de uma frustração pessoal (um amor que desandou? As desavenças coma imprensa?), a filha de Dona Canô traz uma persona mais leve, serena e um pouco saudosista em seu novo disco de inéditas, "Meus quintais", recém-lançado pela gravadora Biscoito Fino.
Ao mesmo tempo em que é um descanso da temática de amores absorventes, a obra marca um retorno da artista às suas origens e as de seu Brasil, aquele mundo que começou a ser construído nos quintais de Santo Amaro da Purificação, na Bahia. Em entrevista coletiva transmitida pela internet, a Abelha-Rainha justificou a escolha ao dizer que o quintal é um marco zero no que diz respeito a tatear a vida: "Foi lá onde aprendi a água, a folha, o vento, o silêncio, a cantar, errar, acertar, namorar. Pra mim quintal é família, agasalho, sexo. Tudo começa ali".
O disco é aberto e se encerra com sons de piano, como se o instrumento descortinasse a floresta íntima de Bethânia para depois resguardá-la novamente. O amor ao canto, esse deus generoso com a família da artista, é louvado na bela canção inicial "Algum canto", de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro. Assim como em "Alguém cantando", de Caetano Veloso, a música vincula a pureza do canto à natureza: "Quando eu ouço a voz da fonte / Não sei que canto que encerra / Parece o gozo do monte / Dentro do ventre da terra".
Com referências indígenas, "Xavante" é assinada pelo paraibano Chico César, com quem a artista contou para criar o conceito do novo disco. "Tinha um desejo de cantar o homem do Brasil, o caboclo, o dono da terra, o índio. Liguei para convidar Chico e plantei a semente que deu origem a esse trabalho", relatou a intérprete. No disco, César também é autor da festiva "Arco da Velha Índia", feita especialmente para Bethânia.
"Casa de Caboclo" (Paulo Dáfilin e Roque Ferreira) é uma das canções de "Meus quintais" que sugerem uma conexão estreita com "Brasileirinho" (2003), disco que narra um mergulho mais intenso de Bethânia por um Brasil interiorano e brejeiro. A sonoridade do novo trabalho, com percussões e instrumentos regionais, reforça essa semelhança. Na coletiva, entretanto, ela afirmou que a diferença essencial entre os dois está declarada em seus próprios títulos: "O álbum 'Brasileirinho' é o Brasil. 'Meus quintais' se trata de algo pequenino, individual e pessoal. É um disco para os meus, os de minha casa", revelou.
Allan Macintyre/Divulgação
Maria Bethânia registra a canção "Lua Bonita", que Dona Canô contava para os filhos
Bethânia optou por fazer um disco sem exageros orquestrais, com arranjos límpidos e interpretações que radiografam um coração que, se está dolorido, redescobriu a plenitude de viver na força do canto e na natureza. Não parece haver dor, mas uma saudade leve das pessoas e lugares que foram embora. Esse é o caso de "Lua bonita" (Zé do Norte e Zé Martins, 1953), canção que Dona Canô, falecida em 2012, aos 105 anos, costumava cantar para os filhos. A interpretação suave de Bethânia faz lembrar sua fase no disco "Âmbar", de 1996, quando o amor surgia como algo sustentável.
Mais duas contribuições de Roque Ferreira enriquecem o disco: as cantigas de roda "Candeeiro velho" (com Paulo César Pinheiro) e "Imbelezô eu / Vento de lá". Enquanto a primeira dialoga diretamente com a capa do álbum – um singelo candeeiro aceso na mata -, a segunda avisa que o novo disco não exclui o amor de sua poética, mas reconfigura-o. Isto é, não há espaço para amores que sangram, apenas para o sentimento que se mostra puro, ingênuo, capaz de fazer alguém se sentir iluminado: "Tô amarrada no cais do coração / que me tomou e me prendeu / Imbelezô eu, imbelezô eu", canta ela.
"Uma Iara", composta pela gaúcha Adriana Calcanhotto especialmente para o álbum, é uma das canções mais bonitas do disco. A música é narrada por alguém que se encantou perdidamente pela sereia Iara, ser de cabelos negros que se deita sobre vitórias-régias, na Amazônia, para seduzir pescadores com seu canto. Na faixa, a cantora ainda recita um trecho do texto "Uma perigosa Yara", de Clarice Lispector.
    Bethânia reforça esse passeio pelo Brasil que há dentro dela - e que foi tão absorvido na sua infância - no tema de folclore popular "Moda da onça" (adaptado por Inezita Barroso em 1960) e nas inéditas "Povos do Brasil" (Leandro Fregonesi) e "Folia de Reis" (Roque Ferreira). Na versão para iTunes, o disco ainda ganha uma faixa extra, "Dindi", de Tom Jobim, maestro que muito incorporou os mistérios da natureza à sua obra musical. Curiosamente, Dindi não se refere a uma mulher, como se costuma pensar, mas à beleza e à selvageria que há na natureza. Por tabela, também ao canto de Bethânia.
    Divulgação
    Capa do novo disco de Bethânia
    DEDICATÓRIA - Chico César fez "Arco da Velha Índia" para Bethânia, que, por sua vez, dedicou a música à Rita Lee. A cantora quase chamou Rita para gravar com ela "Uma Iara", mas depois mudou de ideia. "Deixa a Rita quieta", disse ter pensado.
    ORIGEM - "O disco é árvore, pé no chão, estou descalça", disse Bethânia, que revelou que tem uma atração forte pela cultura indígena. De acordo com ela, o candomblé de caboclo foi a primeira expressão religiosa africana que viu.
    SERVIÇO:
    CD "Meus quintais", de Maria Bethânia 
    Gravadora: Biscoito Fino
    Preço sugerido: R$ 29,90

    Fonte: http://www.folhape.com.br/cms/opencms/folhape/pt/cultura/noticias/arqs/2014/06/0036.html

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